Atualização: A lei foi aprovada pelo Senado brasileiro em 10 de agosto. A pressão da EFF e de organizações aliadas que formam a Coalizão Direitos na Rede para proteger denunciantes (whistleblowers) que revelem crimes ou a violação de direitos humanos foi bem-sucedida. O crime de espionagem excepciona explicitamente esses casos. Infelizmente, o crime de “comunicação enganosa em massa” permaneceu no texto final. De acordo com a redação aprovada, promover ou financiar campanha ou iniciativa para disseminar “fatos que [a pessoa] sabe inverídicos” capazes de comprometer “a higidez do processo eleitoral”, usando “expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada”, poderia levar a até cinco anos de prisão. Também graças à pressão da sociedade civil, nenhum dos crimes estabelecidos pela nova lei se aplica à atividade jornalística ou à expressão que critique poderes constitucionais ou reivindique direitos e garantias constitucionais.
A Câmara dos Deputados brasileira está prestes a aprovar uma lei que ameaça a liberdade de expressão e o direito de reunião e protesto, com o objetivo declarado de defender o Estado Democrático de Direito. O projeto de lei 6764/02 revoga a Lei de Segurança Nacional, um dos legados sinistros da ditadura do país que durou até 1985. Embora haja um amplo consenso sobre os danos que a Lei de Segurança Nacional representa, organizações da sociedade civil têm enfatizado que substituir a lei por um novo ato sem discussão cuidadosa sobre seus fundamentos, princípios e regras específicas corre o risco de reconstruir uma estrutura que serve mais para fins repressivos do que para fins democráticos.
A Lei de Segurança Nacional brasileira tem um histórico de abusos na perseguição e silenciamento de vozes críticas e dissidentes, prevendo tipos penais vagos e crimes que miram a expressão. Após um período relativamente dormente, a lei ganhou novo destaque durante o governo do Presidente Bolsonaro. Ela tem servido como base legal para acusações contra líderes da oposição, críticos, jornalistas e até mesmo um congressista alinhado com Bolsonaro no atual cenário político turbulento do país.
Entretanto, sua proposta de substituição, o PL 6764/02, suscita várias preocupações, algumas particularmente inquietantes para os direitos digitais. Mesmo com substitutivo do texto tentando destrinchá-los, os problemas permanecem.
Primeiro, o delito de espionagem no substitutivo estabelece como crime a entrega de documentos secretos a governos estrangeiros. É crucial que este e outros crimes relacionados à espionagem não se apliquem a atos que levantem sérias preocupações com os direitos humanos: denunciantes (whistleblowers) revelando fatos ou atos que possam implicar a violação dos direitos humanos, crimes cometidos por funcionários do governo e outros delitos graves que afetem a administração pública; ou, reportagens jornalísticas e investigativas, e o trabalho de grupos sociais e ativistas, que tragam à tona as práticas ilegais e abusos dos governos. Estes atos devem ser claramente excepcionados da disposição penal. A proposta em discussão procura abordar estas preocupações, mas não há garantias de que essa proteção prevalecerá no texto final se a nova lei for aprovada.
O Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou a frequência com que os governos da América Latina classificam como secretas as informações sob razões de segurança nacional sem uma avaliação e fundamentação adequadas. O relatório fornece uma série de exemplos na região sobre os obstáculos que isso representa para acessar informações relacionadas às violações de direitos humanos e à vigilância governamental. O Relator da CIDH destaca o papel fundamental dos jornalistas investigativos, a proteção de suas fontes e a necessidade de garantir apoio legal contra represálias aos denunciantes que revelam violações de direitos humanos e outras infrações. Isso se alinha a recomendações anteriores do Relator Especial para Liberdade de Expressão da ONU e reforça a estreita vinculação entre democracia e fortes salvaguardas para aqueles que se posicionam em revelar informações sensíveis de interesse público. Como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos já assinalou:
O direito à privacidade, o direito de acesso à informação e a liberdade de expressão estão intimamente relacionados. O público tem o direito democrático de participar dos assuntos públicos e este direito não pode ser efetivamente exercido apenas com base em informações autorizadas.
Em segundo lugar, a proposta também visa combater as "notícias falsas" tornando a "comunicação enganosa em massa" um crime contra as instituições democráticas. Embora o projeto de lei devesse ser estritamente desenhado para combater ameaças excepcionalmente graves, trazer o tema da desinformação para o seu escopo, ao contrário, mira potencialmente milhões de usuários da Internet. A disseminação de "fatos que sabe inverídicos” capazes de colocar em risco "a higidez do processo eleitoral" ou "o livre exercício dos poderes constitucionais," mediante uso de "expediente não fornecido pelo provedor de aplicação de mensagem privada," poderia levar a até cinco anos de prisão.
Concordamos com os grupos de direitos digitais na Coalizão Direitos na Rede que têm enfatizado as implicações prejudiciais desta disposição para a liberdade de expressão dos usuários. A criminalização da disseminação de desinformação é cheia de armadilhas. Ela criminaliza a expressão, apoiando-se em termos vagos (como neste projeto de lei) facilmente distorcidos para abafar vozes críticas e aqueles que desafiam o poder político consolidado. Repetidas vezes, declarações conjuntas dos Relatores Especiais para a Liberdade de Expressão alertaram os Estados a não tomarem esse caminho.
Além disso, a disposição se aplica quando tais mensagens são distribuídas usando "expediente não fornecido pelo provedor de aplicação de mensagem privada." Presumir que o uso de tais meios é inerentemente malicioso representa uma ameaça considerável à interoperabilidade. A capacidade técnica de conectar um produto ou serviço a outro produto ou serviço, mesmo quando o provedor do serviços não autorizou esse uso, tem sido um fator chave para a concorrência e a inovação. E as empresas dominantes abusam repetidamente das proteções legais para afastar e tentar punir os concorrentes.
Isso não quer dizer que não nos preocupamos com a disseminação maliciosa da desinformação em escala. Porém, essa questão não deveria fazer parte deste projeto de lei, dado seu escopo específico, nem ser tratada sem atenção cuidadosa às consequências negativas não intencionais que respostas a ela podem causar. Há um debate em curso, e outros caminhos a seguir que estão alinhados com os direitos fundamentais e dependem de esforços conjuntos dos setores público e privado.
A pressão política apressou o voto do projeto de lei. O PL 6764/02 pode ser aprovado em poucos dias na Câmara dos Deputados, passando-se à aprovação do Senado. Reforçamos o apelo dos grupos de direitos humanos e digitais de que uma abordagem apressada cria, na verdade, maiores riscos para aquilo que o projeto de lei pretende proteger. Estes e outros artigos preocupantes do PL colocam a liberdade de expressão em risco, servindo também para impulsionar a vigilância e ações repressivas do governo. Esses riscos são o que a defesa da democracia deve evitar, e não reiterar.