Esta é a Parte II de uma série que examina a proposta do Tratado da ONU sobre Cibercrime no contexto das comunidades LGBTQ+. A Parte I analisa as implicações potenciais da minuta da Convenção para os direitos LGBTQ+. A Parte II apresenta uma visão mais detalhada de como as leis de cibercrime podem impactar especificamente a comunidade LGBTQ+ e os ativistas na região do Oriente Médio e Norte da África (OMNA).
Na era digital, os direitos da comunidade LGBTQ+ no Oriente Médio e Norte da África (OMNA) sofrem graves ameaças da legislação abrangente de cibercrime e vigilância. Essa realidade leva à supressão sistêmica das identidades LGBTQ+, obrigando os indivíduos a se censurarem por medo de represálias severas. Essa ameaça iminente se torna ainda mais pronunciada em países como o Irã, onde a conduta do mesmo sexo é punível com a morte, e no Egito, onde apenas levantar uma bandeira do arco-íris pode levar a prisão e tortura.
Assim, temos a proposta da Convenção da ONU sobre Cibercrime. Se ratificada em seu estado atual, a convenção pode não apenas reforçar os poderes de vigilância doméstica de certos países para investigar ações que algumas nações rotulam erroneamente como crimes, mas também pode fortalecer e validar a colaboração internacional baseada nesses poderes. Tal endosso da ONU poderia estabelecer um precedente perigoso, autorizando medidas de vigilância para atos que estão em total contradição com o direito internacional dos direitos humanos. Ainda mais preocupante, pode ser o estímulo para certos países criarem ou aumentarem suas leis penais restritivas, ávidos para explorar o conjunto mais amplo de cooperação de vigilância transfronteiriça que a convenção proposta oferece.
A minuta da convenção, no Artigo 35, permite que cada país defina seus próprios crimes conforme as leis domésticas ao solicitar assistência de outras nações no policiamento transfronteiriço e na coleta de provas. Em certos países, é possível que muitas dessas leis criminais se fundamentem em julgamentos morais subjetivos que suprimem o que é considerado liberdade de expressão em outras nações, em vez de aderir a padrões universalmente aceitos.
De fato, a cooperação internacional é permitida para crimes que acarretam uma pena de quatro anos de prisão ou mais; há um movimento preocupante em andamento para sugerir a redução desse limite para apenas três anos. Isso se aplica independentemente de a suposta infração ser cibernética ou não. Tais disposições podem resultar em maior monitoramento transfronteiriço e possíveis repercussões para os indivíduos, levando à tortura ou mesmo à pena de morte em algumas jurisdições.
Alguns países acreditam que podem contornar essas armadilhas ao não colaborar com países que têm leis controversas, porém, essa confiança pode ser equivocada. A minuta do tratado permite que os países recusem um pedido se a atividade em questão não for um crime em seu regime interno (o princípio da “criminalidade dupla”). No entanto, dada a tensão atual no sistema MLAT , há uma probabilidade crescente de que solicitações, mesmo de países com leis contenciosas, possam passar despercebidas . Isso abre a porta para que as nações cooperem de forma involuntárias em operações que possam contradizer as normas globais de direitos humanos. Além disso, onde os países compartilham os mesmos valores subjetivos e criminalizam problematicamente a mesma conduta, esta minuta de tratado aparentemente dá a justificativa para sua cooperação.
Uma das legislações mais recentes introduzidas que exemplifica essas questões é a Lei do Cibercrime de 2023 na Jordânia. Introduzida como parte das reformas de modernização do rei Abdula II para aumentar a participação política em toda a Jordânia, esta lei foi promulgada às pressas e sem exame suficiente de seus aspectos legais, implicações sociais e impacto nos direitos humanos. Além dessa nova lei, a lei de cibercrime pré-existente na Jordânia já foi usada contra pessoas LGBTQ+, e essa nova lei amplia sua capacidade de fazê-lo. Esta lei, com termos por demais amplos e com definições vagas , restringirá severamente os direitos humanos individuais em todo o país e se tornará uma ferramenta para processar indivíduos inocentes por seu discurso online.
O artigo 13 da lei da Jordânia criminaliza amplamente um amplo conjunto de ações vinculadas ao conteúdo online marcado como “pornográfico”, desde a criação até a distribuição. A ambiguidade na definição do que é pornográfico suprimiria conteúdos que apenas expressam várias sexualidades, considerando-os erroneamente como inadequados. Isso vai além da regulamentação de material explícito; pode suprimir expressões genuínas de identidade. A pena para tais ações são superiores a seis meses de prisão.
Enquanto isso, a terminologia obscura no Artigo 14 das leis da Jordânia – termos como “expor a moral pública”, “devassidão” e “sedução” – é igualmente preocupante. Essa linguagem vaga é ideal para uso indevido, potencialmente restringindo o conteúdo LGBTQ+ ao associar erroneamente orientação sexual diversificada à imoralidade. Ambos os artigos, em sua forma atual, lançam sombras sobre a liberdade de expressão e são lembretes gritantes de que tais disposições podem levar ao excesso de policiamento de conteúdo online que não é prejudicial. Durante os debates sobre o projeto de lei no Parlamento jordaniano, alguns deputados alegaram que a nova lei de cibercrime poderia ser usada para criminalizar indivíduos LGBTQ+ e conteúdo online. O vice-líder da oposição, Saleh al Armouti, foi mais longe e afirmou que "a Jordânia se tornará uma grande prisão".
Além disso, a lei impõe restrições à criptografia e ao anonimato nas comunicações digitais, impedindo que os indivíduos protejam seus direitos a liberdade de expressão e privacidade. O artigo 12 da Lei de Cibercrime proíbe o uso de Redes Privadas Virtuais (VPNs) e outros proxies, punindo com pelo menos seis meses de prisão ou multa por infrações.
Com, isso, os pessoas na Jordânia têm duas opções: envolver-se em livre expressão online ou manter sua identidade pessoal privada. Mais especificamente, terá um impacto negativo nas pessoas LGBTQ+ e os defensores dos direitos humanos na Jordânia que, particularmente, dependem de VPNs e do anonimato para se protegerem online. O impacto do Artigo 12 é exacerbado pelo fato de que não há legislação abrangente de privacidade de dados na Jordânia para proteger os direitos das pessoas durante ataques cibernéticos e violações de dados.
Esta não é a primeira vez que a Jordânia limita a informações e conteúdos online. Em dezembro de 2022, as autoridades jordanianas bloquearam o TikTok para impedir a disseminação de atualizações e informações ao vivo durante os protestos dos trabalhadores no sul do país, e as autoridades também bloquearam o Clubhouse.
Essa repressão à liberdade de expressão impactou particularmente os jornalistas, como a recente prisão da jornalista jordaniana Heba Abu Taha por criticar o rei da Jordânia por suas conexões com Israel. Dado que plataformas online como o TikTok e o Twitter são essenciais para ativistas, organizadores, jornalistas e pessoas comuns em todo o mundo falarem a verdade ao poder e lutarem pela justiça social, as restrições impostas à liberdade de expressão pela nova Lei do Cibercrime da Jordânia terão um impacto negativo no ativismo político e na construção de comunidades em toda a Jordânia.
Pessoas em toda a Jordânia protestaram contra a lei e a União Europeia expressou preocupação sobre como a lei poderia limitar a liberdade de expressão online e offline. Em agosto, a EFF e 18 outras organizações da sociedade civil dirigiram-se por carta ao Rei da Jordânia pedindo a rejeição do projeto de lei de cibercrime do país. Com a lei agora em vigor, instamos a Jordânia a revogar a Lei do Cibercrime de 2023.
A Lei de Cibercrime da Jordânia foi considerada uma “cópia fiel” do Decreto-Lei Federal nº 34 dos Emirados Árabes Unidos (EAU) de 2021 sobre o Combate a Rumores e Cibercrimes. Esta lei substituiu sua antecessora, que havia sido usada para sufocar a expressão crítica do governo ou de suas políticas – e foi usada para condenar o defensor de direitos humanos Ahmed Mansoor a 10 anos de prisão.
A nova lei de cibercrime dos Emirados Árabes Unidos restringe ainda mais o já fortemente monitorado espaço online e impõe mais barreiras para que os cidadãos comuns, bem como jornalistas e ativistas, compartilhem informações online. Mais especificamente, o Artigo 22 determina penas de prisão entre três e 15 anos para quem usa a internet para compartilhar “informações não autorizadas para publicação ou circulação que possam prejudicar os interesses do Estado ou prejudicar sua reputação, estatura ou posição”.
Em setembro de 2022, a Tunísia aprovou sua nova lei de cibercrime no Decreto-Lei nº 54 sobre “combate a infrações relacionadas a sistemas de informação e comunicação”. O amplo decreto foi usado para sufocar a liberdade de expressão da oposição e determina uma pena de prisão de cinco anos e uma multa pela disseminação de “notícias falsas” ou informações que prejudiquem a “segurança pública”. No ano desde que o Decreto-Lei 54 foi promulgado, as autoridades da Tunísia processaram meios de comunicação e indivíduos por sua oposição a políticas ou funcionários do governo.
A primeira investigação criminal sob o Decreto-Lei 54 viu a prisão do estudante Ahmed Hamada em outubro de 2022 por operar uma página no Facebook que relatava confrontos entre policiais e moradores de um bairro na Tunísia.
Táticas semelhantes estão sendo usadas no Egito, onde a lei de crimes cibernéticos de 2018, Lei nº 175/2018, contém disposições amplas e vagas para silenciar a dissidência, restringir os direitos de privacidade e visar pessoas LGBTQ+. Mais especificamente, os Artigos 25 e 26 foram usados pelas autoridades para reprimir conteúdo que supostamente viola “valores familiares”.
Desde a sua promulgação, essas disposições também foram usadas para atingir pessoas LGBTQ+ em todo o Egito, particularmente em relação à publicação ou envio de pornografia nos termos do Artigo 8, bem como ao acesso ilegal a uma rede de informações nos termos do Artigo 3º. Por exemplo, em março de 2022, um tribunal no Egito acusou os cantores Omar Kamal e Hamo Beeka de “violarem os valores da família” por dançarem e cantarem em um vídeo exibido no YouTube. Em outro exemplo, a polícia usou leis de cibercrime para processar pessoas LGBTQ+ por usar aplicativos de namoro como o Grindr.
E na Arábia Saudita, as autoridades nacionais usaram regulamentos de crimes cibernéticos e legislação de contraterrorismo para processar o ativismo online e sufocar opiniões divergentes. Entre 2011 e 2015, pelo menos 39 indivíduos foram presos sob o pretexto de contraterrorismo por se expressarem online – por escrever um tweet, curtir uma postagem no Facebook ou escrever uma postagem em um blog. E embora a Arábia Saudita não tenha nenhuma lei específica sobre identidade de gênero e orientação sexual, as autoridades usaram a Lei Anticrime Cibernético de 2007 para criminalizar conteúdo e atividades online que são consideradas como interferindo na “ordem pública, valores religiosos, moral pública e privacidade”.
Essas disposições foram usadas para processar indivíduos por ações pacíficas, particularmente desde a Primavera Árabe em 2011. Mais recentemente, em agosto de 2022, Salma al-Shehab foi condenada a 34 anos de prisão com uma subsequente proibição de viagem de 34 anos por seu suposto “crime” de compartilhar conteúdo em apoio a prisioneiros de consciência e mulheres defensoras dos direitos humanos.
Essas leis de cibercrime demonstram que, se a Convenção de Cibercrime da ONU proposta for ratificada em sua forma atual com seu amplo escopo, ela autorizaria a vigilância doméstica para a investigação de quaisquer crimes, como os dos artigos 12, 13 e 14 da lei da Jordânia. Além disso, a convenção poderia autorizar a cooperação internacional para a investigação de crimes apenados com três ou quatro anos de prisão, como visto em países como os Emirados Árabes Unidos, Tunísia, Egito e Arábia Saudita.
Como o Canadá alertou (no minuto 01:56) na recente sessão de negociação, essas disposições abrangentes da Convenção permitem que os Estados definam e ampliem de maneira unilateral o escopo da conduta criminosa, potencialmente abrindo caminho para o abuso e a repressão transnacional. A Convenção pode incorporar algumas proteções processuais, no entanto, seu escopo de longo alcance traz questões profundas sobre sua compatibilidade com os princípios fundamentais da legislação de direitos humanos e os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas.
O problema principal não está na gravidade das sanções, mas no fato de que alguns países criminalizam comportamentos e expressões protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos e pela Carta das Nações Unidas. Isso é alarmante, uma vez que inúmeras leis que afetam a comunidade LGBTQ+ impõem penalidades dentro desses limites, o que aumenta o potencial de uso indevido de tal cooperação.
Em poucas palavras, o tratado proposto pela ONU amplifica as ameaças existentes à comunidade LGBTQ+. Ele endossa uma estrutura em que as nações podem monitorar atividades benignas, como o compartilhamento de conteúdo LGBTQ+, potencialmente intensificando a situação já precária para essa comunidade em muitas regiões.
Online, a falta de proteção legal dos dados dos assinantes ameaça o anonimato da comunidade, tornando-os vulneráveis à identificação e subsequente perseguição. O simples ato de se envolver em comunidades virtuais, compartilhar casos pessoais ou expressar abertamente relacionamentos pode levar à divulgação de suas identidades, colocando-as em risco significativo.
Offline, as implicações se intensificam com a hesitação ampliada em participar de eventos públicos, mostrar símbolos LGBTQ+ ou até mesmo realizar rotinas diárias que correm o risco de revelar sua identidade. O potencial da minuta da convenção para reforçar as capacidades de vigilância digital significa que mesmo as comunicações privadas, como discussões sobre relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ou planos para reuniões LGBTQ+, podem ser interceptadas e usadas contra elas.
Para todos os estados membros: Este é um momento crucial. Esta é a nossa oportunidade de garantir que o futuro digital seja aquele em que os direitos sejam defendidos, não comprometidos. Comprometa-se a proteger os direitos de todos, especialmente as comunidades como as LGBTQ+ que são mais vulneráveis. A comunidade internacional deve se unir em seu compromisso de garantir que a convenção proposta sirva como um instrumento de proteção, não de perseguição.